"Alguém" - Menau
"'Para alguém sou um lírio entre os a&ro%$#»...'", ditou o Menau, enquanto andava de um lado para o outro da sala, à frente do quadro.
"Desculpe, 'Stor', entre os quê?"
"A&ro%$#»."
"Desculpe, 'Stor', não percebi. Entre os agrolhos?"
"Não é a&ro%$#», é a&ro%$#»!"
"Agrórios?"
"Vós sois surdos, ou quê? A&ro%$#»! 'Para alguém sou um lírio entre os a&ro%$#»...'"
O Menau tinha um sotaque nortenho carregado, e falava de uma forma arrastada, projectando uma chuva de perdigotos até uma distância de 2 metros. Não valia a pena insistir nos pedidos de repetição; após uma troca furtiva de opiniões, concluímos que provavelmente a palavra alienígena seria "abrórios". Por acaso não era, mas tanto faz, estava resolvido o impasse e seguíamos em frente.
"'... E tenho as formas ideais de Cristo...'"
"'... E tem as formas ideais...'"
"'E tenho'! TENHO!"
"'... Para alguém sou a vida e a luz dos olhos...'"
"'... E, se na terra existe, é porque existo'."
A declamação foi prosseguindo a um ritmo acelerado, e com ela todas as dúvidas que iam sendo colocadas em relação a palavras cuja dicção não era a mais clara. A cada interrupção, o Menau reagia com uma irritação progressivamente maior, mas não era uma irritação normal, era uma irritação misturada com... emoção?!
A malta começou a sentir que se passava qualquer coisa de anormal, e imediatamente o ditado se transformou num jogo no qual quem fizesse a interrupção mais irritante ganhava. Mesmo que a frase fosse clara, havia sempre quem obrigasse o Menau a repeti-la várias vezes, o que ele fazia com crescente irritação, mas sem a fúria destinada a situações deste tipo, a mesma fúria devastadora que dirigia habitualmente a quem usava repetidamente a palavra "portanto".
"'...Esse alguém abre as asas no meu leito...'"
"'... do meu leite...'"
"'No meu leito'! 'NO MEU LEITO'!"
A tensão crescia, e o clímax aproximava-se. Finalmente, o Menau murmurou um doloroso "'... És tu, doce velhinha, ó minha mãe!'".
Após um breve silêncio, surgiu a pergunta inevitável: "... 'Stor', 'ó minha quê'?".
"'... Ó minha mãe'! Mãe! MÃE! Vós sois uns insensíveis! Vós não tendes mãe? Vós não mereceis as mães que tendes!". O Menau mal conseguia falar, com a voz completamente embargada pela emoção. Escorriam-lhe lágrimas pela face, que ele limpava enquanto balbuciava frases completamente imperceptíveis.
Passaram uns minutos até que o Menau recuperasse completamente a compostura, e a aula prosseguiu com o programa habitual: chamadas ao quadro feitas a voluntários previamente seleccionados por nós, que eram os únicos que faziam o TPE.
Por ocasião do Dia da Mãe, com uma dedicatória especial ao Menau e a todas as Mães do mundo, aqui fica o poema de Gonçalves Crespo, "ALGUÉM".
ALGUÉM
Para alguém sou um lírio entre os abrolhos,
E tenho as formas ideais de Cristo;
Para alguém sou a vida e a luz dos olhos,
E, se na terra existe, é porque existo.
Esse alguém, que prefere ao namorado
Cantar das aves a minha rude voz,
Não és tu, anjo meu idolatrado,
Nem, meus amigos, é nenhum de vós!
Quando alta noite me reclino e deito
Melancólico, triste e fatigado,
Esse alguém abre as asas no meu leito,
E o meu sono desliza perfumado.
Chovam bênçãos de Deus sobre a que chora
Por mim além dos mares! Esse alguém
É de meus dias a esplendente aurora,
És tu, doce velhinha, ó minha mãe!
2 comentários:
Long time no see...
Mas vou por aqui andando...
A prespectiva do mundo muda quando nos partem os entes mais queridos e amados...2007 mudou muito para mim, o que não sei se é mais complicado de explicar aos outros ou de entender pelos outros...é assim a vida...o mais importante é realmente que quem parte, seja para onde for que vai, o faça com a certeza que foi muito amado em vida...quem fica terá sempre esse amor para lembrar, porque não é por acaso que mãe só há UMA!
Um abraço
Raizes 255/1985
Alexandre
Delicioso relato de uma aula característica de um colégio interno com educação militar - foi no CM, poderia ter sido no IPE, onde andei.
Essa aparente insensibilidade aprendêmo-la no silêncio da noite, no leito, na camarata, bem pequenos ainda. Não podíamos mostrar fraqueza!
Os anos passaram. Passaram muitos anos e, agora, mais seguros, mais conscientes, até mostramos o como éramos para não sermos fracos. Agora compreendemos os Menaus que nos surgiram na infância e sabemos aguentar a lágrima teimosa que aflora aos olhos ao pensar na «doce velhinha» das nossas vidas.
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