sexta-feira, novembro 20, 2009

Passo Trocado

Portugal é um país onde há crimes, não é um país de criminosos.

Uma generalização é um acto de ignorância ou de má-fé, e se o posso compreender (mas não aceitar) de alegados jornalistas a escrever em alegados órgãos de informação, não o esperava de uma pessoa como o Professor Daniel Sampaio.

O Professor Daniel Sampaio é um psiquiatra de reconhecido mérito, especializado em adolescentes, com presença regular na imprensa, e não resistiu ao apelo do "tema da semana", escrevendo um artigo sobre o Colégio Militar na revista "Pública" do passado dia 1 de Novembro.

Daniel Sampaio começa por referir que "a comunicação social parece ter descoberto agora o que há muito se sabia: existem castigos físicos violentos no Colégio Militar". Em seguida, enumera toda uma variedade de castigos (por exemplo, a "obrigatoriedade de permanecer em 'posição de Cristo' durante horas"), e tudo é apresentado na forma de um diagnóstico claro e objectivo: é claro que existem, é claro que são generalizados, é claro que são (entre outros) estes, e é claro que toda a gente sabe há muito tempo.

A esta altura do artigo já era possível perceber que se passava alguma coisa, porque a expressão "há muito se sabia", uma variante da expressão "toda a gente sabe", é geralmente usada no debate político ou no futebol, em contextos onde a demagogia impera sobre a lógica. Normalmente quando alguém diz "toda a gente sabe" quer simplesmente dizer "eu acho que [...], e quem não concorda comigo é ignorante ou está de má-fé".

"Como se trata de um internato - um modelo educativo felizmente em extinção - [...]", segue o artigo, deixando as coisas um pouco mais claras: Daniel Sampaio não concorda com o internato e acha que este modelo deve ser extinto.

Em primeiro lugar, há que perceber de que internato é que se está a falar. Os alunos do Colégio Militar têm obrigatoriamente que dormir na instituição de segunda-feira para terça-feira, de terça-feira para quarta-feira, e de quinta-feira para sexta-feira. São três noites das sete que a semana tem - não estamos propriamente a falar do internato da "Manhã Submersa", de Vergílio Ferreira. Se devemos extinguir este internato por causa dos alunos dormirem fora de casa em três das sete noites da semana, o que é que se segue? Vamos extinguir os acampamentos dos Escuteiros? Vamos extinguir os campos de férias de verão?

E o que dizer de dezenas de colégios ingleses de grande prestígio, que têm modelos de internato mais exigentes em termos de noites dormidas do que o do Colégio Militar?

O resto do artigo deixa claro que se trata de uma expressão da opinião pessoal de Daniel Sampaio sobre o Colégio Militar - perfeitamente legítima, claro - e não de um diagnóstico profissional, como a utilização da especialidade "Psiquiatra" poderia sugerir.

Já a finalizar, Daniel Sampaio refere: "Sei que muitos alunos, pais e professores do Colégio Militar gostam desta escola. [...] Falta-lhes, contudo, a coragem que apregoam. Escasseia-lhes a bravura para denunciar o que está mal [...]". Uma perspectiva inédita e interessante: Daniel Sampaio acha que os alunos, pais e professores que gostam do Colégio (e admite que os há) são os cobardes responsáveis pela não resolução dos alegados problemas.

Mas há um caminho que me parecia razoavelmente óbvio e que Daniel Sampaio não seguiu, que é o caminho de procurar os responsáveis subindo na cadeia hierárquica, ou seja, responsabilizar a Direcção, as chefias militares e o poder político. Não será que são estas entidades e pessoas que têm a responsabilidade e os meios para identificar e resolver os alegados problemas, e quanto mais acima estão, mais responsabilidade e mais meios têm?

Porque é que Daniel Sampaio não seguiu este caminho? Esquecimento? Poucos caracteres disponíveis no artigo?

Não vou atribuir a Daniel Sampaio intenções que talvez não tenha, mas vou esclarecer os leitores sobre o que encontrarão se avançarem pelo caminho de responsabilizar a tutela pelo que alegadamente se passa no Colégio Militar: irão descobrir, entre outras coisas, que o responsável máximo pela identificação e resolução dos alegados problemas do Colégio Militar, enquanto Comandante Supremo das Forças Armadas, foi durante 10 anos (de 1996 a 2006) o Presidente Jorge Sampaio, irmão de Daniel Sampaio.

Quem diria que às vezes as soluções para os problemas parecem tão longe, mas estão em nossa casa, à mesa do almoço de Natal? Será que Daniel Sampaio não sabia que o irmão tinha capacidade e responsabilidade para resolver os alegados problemas do Colégio Militar? Terá faltado nessa altura a Daniel Sampaio "a coragem que apregoa"? Será que na altura não sabia "o que há muito se sabia"? Talvez simplesmente o Presidente Jorge Sampaio, com a informação adequada e a ponderação e responsabilidade exigidas pela função que ocupava, tenha assumido as posições que considerou mais equilibradas e adequadas aos interesses do País e de todos os envolvidos.

"Esquerdo, direito, um, dois!" era o título do artigo, mas Daniel Sampaio está com o passo trocado.

2 comentários:

Brocas Sénior disse...

Muito BOM!

Obrigado.

Lu 499/84 disse...

...And that's a wrap!!

Perfeito :)